A Porteira Está Aberta

Passe pela Porteira e seja bem-vindo ao nosso campo de lirismos, um espaço criado com o intuito de sistematizar algumas informações sobre a obra de Zila Mamede – um dos nomes mais expressivos da literatura potiguar. Para navegar com mais facilidade, escolha uma opção não seção “Temas” (verificar a barra lateral direita).


domingo, 19 de dezembro de 2010

Antologia Poética

Rosa de pedra (1953)

Flor Extinta
Extinta flor azul na correnteza,
desfeita luz na face transitória
do tempo, voz perdida na memória
em traços, mudas formas de beleza.

Sob folhas de mangue acobertada,
extinta flor azul entorpecida
numa corola resta vã, sem vida,
navega na torrente, atormentada.

Distantes, já, em sombras liquefeitas
as pétalas marejam sóis, desfeitas
em mil fragmentações, gestos sem cor.

Nas brumas, morto caule inconformado
liberto foi de corpo ensangüentado,
perdido corpo azul de extinta flor.


Soneto Noturno para o Rio Capibaribe
Nos mistérios do rio me perdi,
na amargura do rio me encontrei
na sombra que beijava a flor do rio
senti minha saudade anoitecer.

O rio fez-se vento onde nasci:
sua água tem o pranto que chorei
quando o vento, pousando o leito, frio,
quis da espuma meu sangue recolher.

Sou pontes, sou granito, sou letreiros,
sou mangues, sou barcaças, sou cantigas
desenhando petróleos na torrente.

Sou rio que compõe os seus barqueiros
dos soluços da margem que, ora, antiga,
gera flores e lama, indiferente.


Salinas (1958)

Réquiem para Minha Irmã
Um montículo de areia.
Lá em baixo, uma vida que foi.

Que pensarão os olhos claros da menina,
agora?
Que cansaços infantis cuidando
e que vozes chamarão?

Esse é um campo semeado
de urzes
─ são estrelas cadentes
que a memória não precisa ainda.

Da menina plantada em terra escura
vingará um girassol azul
que os meus dedos
(se alongando, se alongando)
colherão,
para enfeitar, além,
os meus caminhos de também morrer.


Retrato
Me lembrava da menina
escavando o chão agreste,
me lembrava do menino
carregando melancias.

Em que terras desembocam
esses talos de crianças
mais finos que as maravalhas,
mais fortes que a ventania?

Dois pés descobriram casa,
multiplicaram-se em hastes
– são cabeleiras de trigo
dos moinhos de Van Gogh.

A sobra dos dois irmãos
repartiu-se entre os veleiros:
seu tronco desarvorado
virou estrelas no mar.


 O arado (1959)

Rua (Trairi)
Nos cubos desse sal que me encarcera
(pedra, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.

Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-me meus passos;
e a velha grama (pasto de lirismos)
afolga-se nos sulcos das enxadas,

nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonam-
se nesta rua vívidos fantasmas

de seus rios-meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.



Bois dormindo II
Os bois dormem ainda. Já cansaram
de ver que o chão em pasto não rebenta.
Do sono é que lhes vem o encantamento
pois nele o verde verdinovoaponta.

Eles abrigam (quando adormecidos)
nos olhos, o rumor, a nostalgia
das noites invernais, as correntezas
onde iam beber água de manhã;

o cheiro dos estrumes que largavam
pelas queimadas, quando rasteavam
trilha tapera transbordando chuvas

de maio. São os bois. Não os despertem.
No sono seu ruminam madrugadas
que a terra seca não lhes pode dar.



Exercício da palavra (1975)

A Ponte
Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
de pedra e de aço
onde não
permaneço
                       – p a s s o.



Mãe
A mulher fia o filho.
No silêncio do corpo
inaugura-se: mãe.
O ventre: curvatura de sol
levantando-se
em mansidão de horizonte.
De si própria se esquece:
tecelã da rosa que já aflora
em crescimento lento
no seu sangue.


Corpo a corpo

Caieiras
Memórias há (vão e vêm)
das queimadas de caieiras:
a vida deslembra a gente
da vida que não se tem.
Fumaça assobe na frente
labareda vem depois.
Tijolo e telha cobrindo
a querência de nós dois.

Viola bem assentada
no florir dos cajueiros,
alpercatas batucando
o chão do chão do barreiro,
as mulatas ressurgindo
com seus dengues noveneiros,
as comadres se benzendo
frente ao santo milagreiro.

Aluás somem dos potes,
fogem em risos de tropeiros,
nas prendas dos namorados,
no aboio dos vaqueiros,
na presença do Senhor
da Casa-Grande – o festeiro,
no fogaral projetando
seu calor pelo terreiro.

Caieiras milavoengas,
tijolos: encantação
de caminhos não batidos,
de telha embicada vã,
dos pedregais dos açudes
(sem água), de solidão:
o tempo resumiu tudo
em vida-palavra-chã.


A herança


VII
E tu, menina
testamenteira,
onde o plantio
da sementeira?

Me sucedeste,
filha, és fiel
à tua herança
em letra e essência?

É o teu projeto
(brado e tropel,
cifra e poesia)
pétrea alquimia?

Da hereditária
suserania
te concedi
sol(o), sal, grão.


Exercícios de poesia

Encontro
Busquei a paz
No cimo das montanhas

No brilho das estrelas
Em toda a Natureza
E não a encontrei
Porque ela já estava
Em mim mesma.
Encontrei a Paz
No meu próprio coração.


Poema nº 8
Tempestades sombrias
Varreram as folhas
Da árvore da minha vida
Que ficou desnuda e só.
Quando o inverno passe
Se o sol começa a brilhar
Uma seiva nova
Há que circular em mim
Para o nascer de outros ramos
E o despontar de novas folhas
Que já não hão de ser
Arrebatadas
Por tempestades sombrias.

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